REPORTAGEM EXCLUSIVA PARA O BLOG ANIMAIS OK
JORNALISTA LUIZ ANTÔNIO MACIEL, DE NOVA YORK
A estátua do cão Balto no Central Park (Foto de Luiz Antônio Maciel) |
Os cidadãos norte-americanos gostam de cultuar seus
heróis humanos, virtuais ou imaginários e até animais – sejam os que dedicaram
uma vida inteira anônima de fidelidade e amor a seus donos, perpetuada em memoriais
discretos em parques públicos, sejam os que realizaram feitos memoráveis, eternizados em bronze, mármore ou pedra, para
conhecimento e veneração das gerações futuras.
Quem percorre os limites externos ou os
sinuosos caminhos internos do Central Park, no coração de Manhattan, se depara
com vários monumentos em homenagem a esses heróis. Um deles é a escultura em
bronze de anônimos soldados norte-americanos que combateram na Primeira Guerra
Mundial; outro, a estátua equestre de Simon Bolivar; um conjunto de personagens
de Alice no País das Maravilhas; a
estátua em bronze de Hans Christian Andersen, sentado em um banco de granito
lendo seu livro de histórias infantis. Ou ainda o obelisco, também conhecido
como a Agulha de Cleópatra, encomendado pelo faraó Thutmosis III, por volta do
ano 1450 antes de Cristo, e transportado para Nova York no século 19, em troca
de uma ajuda norte-americana ao governo do Egito.
Gunnar Kaasen e Balto, em fotografia tirada provavelmente em 1925. (Foto Brown Brothers, Wikimedia Commons)
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Foto Luiz Antônio Maciel |
Além dos méritos próprios, Balto simboliza o
esforço de 150 cães e 20 condutores de trenós que, no rigoroso inverno de 1925,
percorreram 674 milhas (1.084 quilômetros) para levar uma carga de 20 libras
(cerca de 9 quilos) de soro contra difteria da cidade de Nenana até Nome, que
estava ilhada pelo inverno e registrava uma epidemia da doença. Causada pela
toxina de um bacilo, a difteria ou crupe tinha possibilidade de se tornar
altamente contagiosa para a população local, a maioria de origem esquimó, sem
defesas naturais para enfrentá-la. O único médico da cidade diagnosticou a
doença em janeiro, em um menino esquimó; logo em seguida, quatro crianças
morreram e 18 ficaram seriamente doentes.
Um pedido de socorro
Em 20 de janeiro de 1925, da cidade de Nome partiu
um apelo desesperado: “Nome chamando... Nome chamando... Temos um surto de
difteria. Nenhum soro. Precisamos de ajuda urgente. Nome chamando... Nome
chamando...”
A cidade de Seattle respondeu, dizendo que
tinha soro à disposição e um avião disponível para o transporte. Mas as
condições do inverno em Nome impediam o pouso, e o avião nem decolou.
Em 25 de janeiro, chegou uma mensagem,
procedente da cidade de Anchorage, a maior do Alasca. “Anchorage chamando...
Anchorage chamando... 300 mil unidades de soro localizadas aqui no hospital da
ferrovia. O pacote pode ser despachado por trem para Nenana... O pacote pesa 20
libras... O soro pode ser transportado para Nome pela trilha Iditarod por
condutores dos correios e equipes de cães.”
A carga chegou a Nenana por trem no dia 27 de
janeiro. A temperatura caia rapidamente: 20 graus abaixo de zero, 30 graus... Mesmo
assim o primeiro condutor, “Wild Bill”
Shannon, arreou seus cães ao trenó e decidiu percorrer 52 milhas (84
quilômetros), enfrentando temperaturas de até 50 graus negativos, para chegar ao
ponto do próximo revezamento.
A Corrida do Soro
Condutores esquimós, índios e brancos se
sucederam nessa corrida de 674 milhas, que se tornou conhecida como a Corrida
do Soro de Nome (Nome Serum Run)
ou a Grande Corrida da Misericórdia (Grand Race of Mercy) e deu origem a uma
competição esportiva que se mantém até os dias atuais, sempre no mês de março,
conhecida como a Corrida de Cães de Trenós na Trilha Iditarod (Iditarod
Trail Sled Dog Race).
As várias equipes de
homens e cães superaram suas próprias forças e numerosos perigos para cumprir a
missão. No dia 30 de janeiro, um jovem índio recém-casado George Nollner, percorreu
parte de um total de 30 milhas (48 km) cantando velhas canções de amor, mas a
partir de determinado trecho teve de colocar os arreios nele mesmo e ajudar os
cães a puxar o trenó depois que dois animais de sua equipe ficaram com as patas
congeladas.
No dia seguinte,
Leonhard Seppala, uma lenda viva entre os condutores de trenós, criador de
huskies siberianos e considerado o pai da raça, enfrentou problemas sérios. Ele
havia saído de Nome, a 150 milhas (241 km), para apanhar o soro em algum ponto
da trilha usada pelos correios e voltar para a cidade. Em Shaktoolik, pegou a
carga com o condutor russo esquimó Henry
Ivanoff. O cão líder de Seppala era Togo, filho de um cão metade husky
siberiano e metade malamute do Alasca e de uma cadela husky importada da
Sibéria. O nome era uma homenagem ao almirante japonês Heihachiro Togo, que
lutou na guerra entre a Rússia e Japão (1904-1905).
Salvo pelo cão
Togo era
considerado o melhor líder de equipe do Alasca, capaz de conduzir os demais
cães com habilidade e senso de perigo pela rota mais segura. Ao chegar à
enseada de Norton Sound, Seppala pretendia cortar caminho pela superfície
congelada, para ganhar tempo, mas a decisão ficou com Togo, que percorreu uma
parte do caminho no gelo, mas logo preferiu a segurança da terra firme. Três
horas depois, a superfície congelada de Norton Sound foi destruída por uma
ventania, que jogava a água do mar com força sobre o gelo. Ao chegar a Golovin,
depois de percorrer 91 milhas (146 km), os cães estavam exaustos e Seppala
transferiu a carga para a equipe de Charlie Olson, que percorreu 25 milhas (40 km) até Bluff.
Nessa cidade, no
dia 1° de fevereiro, quando o número de vítimas da difteria em Nome já chegava
a 28, o condutor norueguês Gunnar Kaasen recebeu o soro das mãos de Olson, que
chegou em péssimas condições físicas, depois de enfrentar um frio de 57 graus
negativos e ventos de até 130 quilômetros por hora. O soro precisava ser
entregue no menor prazo possível, porque a quantidade de doses só dava para
atender, no máximo, 30 pacientes. Era preciso chegar antes que a difteria se
espalhasse ainda mais.
Um líder sem passado
Kaasen decidiu
colocar o cão Balto como guia da equipe, embora até aquela data ele nunca
tivesse liderado uma matilha nem corrido grandes distâncias. Havia apenas
trabalhado no transporte de mercadorias em pequenos trajetos, principalmente na
empresa de mineração de ouro Hammon Consolidated Gold Fields.
Nascido no canil de
Seppala em 1919, Balto era um husky preto azeviche, com marcações brancas nas patas,
no peito, na barriga e na ponta do focinho. Aos seis meses foi castrado, porque
Seppala concluiu que seu fenotipo não era adequado para o trabalho de puxar
trenós e, portanto, não deveria procriar. Era um pouco quadrado e tinha o que
os cinófilos chamam de costelas de barril, o que fez com que suas pernas
dianteiras crescessem um pouco arqueadas, dificultando o movimento de correr ao
puxar o trenó.
Apesar desses pontos
negativos, Kaasen confiou no cão. E Balto foi muito além do que era esperado. Liderou
a equipe na noite escura, através da neve que se acumulava na trilha, em áreas
alagadas e subindo a montanha Topkok. Balto percorria o caminho
instintivamente, confiante e seguro, apesar da baixa visibilidade que, muitas
vezes, até impedia o condutor de ver os cães mais próximos do trenó.
Acidente e susto
Durante o trajeto,
uma rajada de vento muito forte levantou os cães e virou o trenó. Depois de
ajeitar os arreios nos cães e colocar o carro na posição correta, Kaasen teve
um choque ao perceber que o pacote com o soro havia caído na neve. Seu coração
quase parou. Desesperado, ele começou a cavar a neve com as mãos, sem luvas,
para facilitar a busca. Felizmente, apesar dos ferimentos causados pelo gelo
nos dedos, pouco depois Kaasen encontrou o pacote.
A equipe chegou às
3 horas da madrugada do dia 2 de fevereiro, antes do horário previsto, a Point Safety (Ponto de Segurança), onde um
novo condutor, Ed Rohn, deveria substituir Kaasen. No entanto, Rohn dormia e,
como os cães estavam correndo bem, o norueguês decidiu fazer o trajeto final de
25 milhas (40 km) até Nome, depois de um rápido descanso, durante o qual
aproveitou para manter o soro aquecido, na temperatura adequada.
“Cão danado de bom!”
Às 5h30, Kaasen entrou
na Front Street, em Nome, parando o trenó diante do Merchants & Miners
Bank. As poucas testemunhas que estavam acordadas naquele momento e foram para
a rua dizem que o condutor caminhou cambaleante até a frente da equipe de cães
e se ajoelhou diante de Balto dizendo: “Damn fine dog!” (“Cão danado de bom!”)
Em poucas horas, a
notícia se espalhou pelos Estados Unidos e a equipe de cães se tornou manchete
em vários jornais do país. Balto foi considerado um herói. A corrida de 674
milhas (1.084 km) havia sido completada em 127 horas e trinta minutos. Um
verdadeiro recorde.
Na verdade, até
esse momento, o líder da equipe não tinha nome, ou tinha um nome comum, desses
que são dados a cães. A partir de então, porém, passou a ser chamado de Balto,
em homenagem a Samuel Balto, explorador norueguês que, em 1888, participou da
primeira travessia da Groenlândia.
Balto passou a ser
uma atração nacional, com dias de glória e outros nem tanto. O produtor de
Hollywood Sol Lesser contratou Kaasen, Balto e os demais cães para uma viagem a
Los Angeles, onde o cão teve direito a uma suite no California Biltmore Hotel.
Em Mount Rainier, Estado de Washington, filmou em dois rolos um
curta-metragem intitulado “Balto’s race to Nome” (“A corrida de
Balto até Nome”), que foi oficialmente lançado em junho de 1925, quatro meses
após o feito. Infelizmente, com o passar dos anos, esse filme se perdeu. Só
sobraram alguns fotogramas.
Estátua no Central Park
Em 17 de dezembro
de 1925, no Central Park, de Nova York, foi inaugurada uma estátua em bronze de
Balto, a primeira da cidade em homenagem a um cão. Ela foi feita pelo escultor
Frederick George Richard Roth (1872-1944), especializado em retratar animais
vivos. Balto e Gunnar Kaasen participaram da cerimônia.
Depois desses
momentos de glória, vários empresários do setor de entretenimento compraram sucessivamente
os cães para exibi-los pelos Estados Unidos, muitas vezes em espetáculos de
segunda categoria. Em 19 de março de 1927, Balto e mais seis cães sobreviventes
foram resgatados de um “museu” popular onde eram exibidos com entradas ao preço
de um dime (10 centavos), e levados para o Brookside Zoo, em Cleveland, Ohio,
onde viveram até o último de seus dias desfrutando de bom tratamento.
Em 14 de março de
1933, às 14h15, Balto foi sacrificado pelo veterinário R. R. Powell, assistido
por Curley Wilson, coordenador do zoológico. Aos 14 anos, ele estava
praticamente cego e surdo e sofria de artrite nas patas traseiras. Em seguida, foi
empalhado e é uma das atrações do Museu de História Natural de Cleveland,
embora a cor de seu pelo, de preto azeviche, tenha mudado para “mahogany-brown” (castanho acaju) devido
ao efeito do tempo e da iluminação nos locais onde é exposto. Por sua história
de heroísmo, seu corpo embalsamado ainda é requisitado para exibição em várias
partes dos Estados Unidos.
A placa em homenagem ao espírito vencedor dos cães que participaram da Corrida do Soro no Alasca (Foto Luiz Antônio Maciel)
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Personagem de Spielberg
Em memória ao feito
de Balto e dos demais cães, no ano de comemoração de 70 anos da Corrida do
Soro, em 1995, a Amblin Entertainment, empresa do cineasta Steve Spielberg, e a
Universal Pictures, lançaram um filme de animação intitulado “Balto”, contando
a história dos fatos ocorridos em 1925, misturada com um pouco de ficção, para
atrair espectadores. Depois, no ano de 2000, e novamente em 2004, a Universal
Cartoon Studios produziu duas sequências do primeiro filme: “Balto 2 –
Wolf Quest” e “Balto 3 – Wings
of Change”, ambos de ficção. Alguns desses filmes podem ser encontros em
DVD, nos Estados Unidos e também no Brasil.
Ainda hoje, visitantes do Central Park, em
Nova York, procuram a estátua de Balto para tirar fotos ou ser fotografados ao
lado do cão eternizado por sua coragem, destacada numa placa de bronze, com o
desenho, em alto relevo, de cães puxando um trenó:
"Dedicado ao indomável espírito dos cães
puxadores de trenós que se revezaram no transporte de antitoxinas 600 milhas
sobre gelo áspero e através de águas traiçoeiras e tempestades de neve do
Ártico a partir de Nenana, para alívio de Nome, no inverno de 1925.
Resistência. Fidelidade. Inteligência.”
Manchete de jornal de Cleveland do dia 1° de fevereiro de 1925 informa que Nome tem esperança à medida que os cães se aproximam da cidade (Reprodução do Cleveland Museum of Natural History)
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