quarta-feira, 3 de julho de 2013

A missão de Juju

            O veterinário Renato Ênio Iazzetti * enviou para este blog esta belíssima história, baseada em fatos reais do atendimento em sua clínica, em São Paulo. Vale a pena ler. Agradecemos a contribuição.

"Branquinha, toda graciosa, a poodle toy Juju veio à clínica pela primeira vez em janeiro de 2000, para tomar banho. Os donos eram um casal de classe média, de meia-idade, sem filhos. Quem trouxe  Juju até nós foi a mulher, Maria Teresa di Sessa Pandolf, assistente social.  Logo ficou visível que ela e Marcos, o marido, tinham um enorme carinho pela poodle, e eles se tornaram nossos clientes.
Diga-se aqui que a maioria dos proprietários mantém conosco uma relação profissional, e pouco conversamos sobre nossa vida pessoal. Mas Maria Teresa não era assim. Teca, seu apelido,  conversava com todo mundo na clínica:  tosador, recepcionista, veterinários  e com os outros proprietários de animais. Contava fatos de sua vida, trocava ideias sobre tudo e todos, sempre sorrindo e esbanjando simpatia. Ela  gostava de falar  de seus projetos, dando ênfase maior a um deles, em que liderava um grupo que cuidava de crianças com câncer. O grupo sonhava construir um hospital para tratá-las crianças e muitas vezes, quando Juju passava em consulta, falávamos mais do projeto do que sobre a própria “paciente”. 
Teca sempre falava com emoção das crianças, comentando cada caso individualmente, sempre demonstrando dedicação e envolvimento. Seu perfil era incompatível com uma pessoa sem filhos: ela tinha muito amor para dar.  Não sei se não podiam ou não queriam ter filhos,  e não me senti à vontade para perguntar. Mas tinha certeza de que Teca seria uma excelente mãe. Então, em novembro daquele ano, Juju veio mais uma vez à clínica. Teca relatou que ela estava inquieta, cavoucava o chão e tivera cio há aproximadamente dois meses. Ao examinar Juju percebi que ela tinha os alvéolos mamários repletos de leite; estava com pseudociese, doença hormonal que causa lactogenese (produção de leite) mesmo não existindo uma gestação. Fizemos um  tratamento emergencial com aplicação de medicamentos, mas avisamos Teca que os sintomas reapareceriam após os próximos cios de Juju. A solução definitiva seria cirúrgica. Teríamos de retirar os ovários dela, responsáveis pelo desajuste hormonal. Juju  tinha também um pequeno nódulo na região lombar, o que deixava sua dona  apavorada com a possibilidade de que o caroço se revelasse um câncer. Só em falar no assunto ela saía do sério.
Entretanto, Teca não queria que operássemos Juju,  porque tinha muito medo da anestesia. Demorou um ano para que ela aceitasse o problema e nos deixasse fazer a cirurgia. No dia 18 de outubro de 2001 tiramos os ovários de Juju;  aproveitamos a anestesia para extrair tártaro dentário (fruto das guloseimas que comia) e retirar o pequeno nódulo de suas costas. Era um quisto sebáceo, um processo inflamatório nas glândulas da pele, e por isso não vi necessidade de fazer uma biópsia (exame histopatológico). Além disso, o resultado leva em média cinco dias úteis para ficar pronto e Teca passaria por uma forte ansiedade sem motivo. Felizmente, tudo correu bem e depois disso  Juju  veio à clínica esporadicamente, para curar algumas otites e alergias alimentares.
Em agosto de 2002 Teca voltou à clínica. Desta vez, além de Juju, veio acompanhada de uma menina de aproximadamente três anos. Era sua filha, disse-nos.  Estava reluzente, muito feliz, e contou sobre a adoção com seu entusiasmo corriqueiro. E explicou que estava ali porque Juju apresentara outro caroço, agora  perto de uma das mamas.
Dessa vez eu estava preocupado com a possibilidade de tratar-se de um tumor. Juju teria de passar por outra cirurgia. Expliquei a Teca que seria ampla, a fim de retirarmos a maior quantidade de tecido adjacente ao caroço. Ela aceitou e, realizada a cirurgia,  mandei o material para laboratório . Em uma semana recebi o resultado: “adenocarcinoma mamário sólido”, ou seja, tumor maligno, com grandes chances de desenvolver metástases nas outras mamas e, principalmente, nos pulmões.
Contar à Teca era necessário, mas muito difícil. O principal tratamento para esse tipo de câncer é cirúrgico e já tínhamos feito isso. Havia a possibilidade de uma quimioterapia após a cirurgia, mas Juju tinha idade avançada, o que tornava o tratamento contraindicado: traria mais malefícios do que benefícios.  Meu principal argumento para tranquilizar Teca era que a biópsia mostrou as margens cirúrgicas do tumor  livres de células tumorais,  pois isso tornava menos provável  a possibilidade de  uma metástase nas mamas próximas às daquela retirada.
Entretanto, no fim de novembro do mesmo ano, Juju retornou à clínica. Tinha muita dificuldade respiratória e o exame radiográfico mostrou que os pulmões estavam repletos de tumores. Mediquei-a apenas para aliviar os sintomas da doença, pois o caso não permitia qualquer tratamento específico.  Poucos dias depois, Marcos, o marido de Teca,  chegou à clínica com Juju  inconsciente. Entrou correndo na sala de consulta, mas Juju já estava morta. Ele chorou como criança.
Por mais cético que eu pudesse ser, foi impossível não associar certas coincidências. Juju teve a doença que sua dona mais temia, talvez por  lidar de perto com essa patologia junto às crianças . Por outro lado, Juju só adoeceu depois que chegou uma criança à casa. Era como se Juju tivesse uma missão a cumprir, convivendo com Teca e seu marido até que a menina chegasse e eles tivessem a quem repassar o seu amor.
Coincidência ou destino? As coisas acontecem ao acaso ou estão interligadas por motivos que desconhecemos? Penso que a resposta depende do observador, da forma como cada um vivencia os fatos que ocorrem em sua vida."
* Renato Ênio Iazzetti é veterinário, com pós-graduação em Cirurgia Ortopédica de Pequenos Animais. Ele é  e um dos sócios-proprietários do Hospital Veterinário Med Dog, com 17 anos de atividades,  localizado no bairro do Cambuci.

"Era como se Juju tivesse uma missão a cumprir, convivendo com Teca e seu marido até que a menina chegasse e eles tivessem a quem repassar o seu amor" (frase do texto) 

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