domingo, 27 de outubro de 2013

Um Prêmio Nobel para os cães

Ilustração Max/Diário do Comércio
RICARDO OSMAN
O melhor amigo do homem é um herói para os diabéticos. Foi graças aos cachorros, que cederam seus pâncreas e suas almas para a ciência, que os cientistas do final do século 19 e início do 20 descobriram que a falta de insulina – hormônio que leva a glicose do sangue para os tecidos – acarreta o emagrecimento, aumenta a quantidade de açúcar na urina e provoca a morte.
Naquela ocasião, o diagnóstico de diabetes era uma sentença terrível. As primeiras pesquisas ocorreram em 1889, na Alemanha. Oskar Minkowski e Joseph von Mering retiraram o pâncreas de um cachorro, conseguiram manter o animal vivo e observaram,  nos dias seguintes, surgir o quadro de diabetes. A experiência demonstrou que havia algo no pâncreas relacionado com o aumento do açúcar na urina (a glicosúria). Não se sabe nada do tal cachorro, talvez um simples vira-lata de Berlim.
Somente em 1910, Edward Sharpey-Schafer, utilizando igualmente cachorros, levantou a hipótese de que o diabetes seria causado pela deficiência de uma substância química, produzida no pâncreas pelas células das ilhotas de Langerhans. A insulina.
Pouco mais de uma década, outros cãezinhos cederam suas preciosas vidas para a Medicina: depois da Primeira Guerra Mundial, Frederick Banting e Charles Best publicaram a prova definitiva sobre o tratamento da diabetes por meio da insulina. Eles trabalharam na Universidade de Toronto, no Canadá. Injetaram em cachorros diabéticos extratos de células das ilhotas de Langerhans retiradas do pâncreas de cachorros saudáveis, revertendo o quadro da doença. Em seguida, Banting  recebeu o Prêmio Nobel de Medicina.


Os cientistas Frederick Banting (à esq.) e Charles Best
diante do cachorro que teve o
pâncreas retirado. Experiências no Canadá em 1921.

Todo diabético do mundo deve agradecer aos cães por estar vivo. Muitas crianças foram imediatamente tratadas com o novo medicamento.
Segundo o médico Drauzio Varella, em seu site, ao todo dez prêmios Nobel foram distribuídos aos cientistas na longa trajetória que levou das primeiras pesquisas na Alemanha até a refinada técnica da insulina pura injetável. Vale lembrar que cães também sofrem de diabetes e o tratamento é feito com insulina.
Mas o que essas histórias têm a ver com o Instituto Royal, que fazia pesquisa com 178 cães da raça beagle em São Roque?
O Instituto Royal é uma caixa preta. Nunca se soube o que exatamente ocorria lá dentro com cães, coelhos e roedores. Pesquisas de cosméticos? Fitoterápicos? Agrotóxicos? Medicamentos contra o câncer?
O Instituto Royal parece estar fazendo pesquisa no século 19: acha que não precisa prestar contas à comunidade, ter transparência, dizer o que faz, para quê e a que custo. Era assim nos dias dos alemães Oskar Minkowski e Joseph von Mering. Mas naqueles tempos antigos poucos se interessavam por aquelas experiências ‘malucas’ – nem eles sabiam ao certo o que procuravam.
Atualmente, a ciência e o cenário são bem diferentes. O Instituto Royal faz pesquisas nos tempos da engenharia genética, do sequenciamento do DNA, dos tecidos vivos produzidos em laboratórios, e do conhecimento avançado da fisiologia dos bichos. Funciona nos dias da comunicação online, do Facebook, do iPad e do iPhone, e do conceito de Bem-Estar Animal.
Principalmente: o Royal faz pesquisa em um momento em que os cães não estão relegados às ruas e à parte exterior das casas. No século 19, a maioria dos cães era vista como ameaça à vida humana devido ao risco de transmissão da raiva, doença incurável causada por vírus, e transmitida pela mordida de animais. Mas precisamente naqueles dias de Minkowski e Mering, em outro ponto da Europa, na França, Louis Pasteur estudou cães e desenvolveu a vacina contra a raiva. Este é o avanço da ciência que permitiu o ingresso dos cachorros dentro da sala de estar das famílias dos países ocidentais.
O cachorro doméstico, primo dos lobos, virou o melhor amigo do homem, por sua qualidade social e afetiva. Hoje, no Brasil, os cachorros estão dentro das casas e apartamentos, brincam com as crianças na frente da televisão, fazem companhias a idosos, são astros nos cinemas e sucesso na literatura. Todos devidamente vacinados.
O Instituto Royal esqueceu-se de Louis Pasteur.
As vacinas mudaram o mundo. E os segredos de pesquisas feitas com animais são hoje insuportáveis para boa parte da população. O imaginário popular em São Paulo e no resto do Brasil correu solto diante dos mistérios mantidos a sete chaves pelo Instituto Royal. Logo, a presença confirmada de cães beagles dentro da instituição começou a alimentar vários roteiros de filmes de terror e a aglutinar críticos por meio das redes sociais. Uma semana depois da invasão do instituto por ativistas que resgataram 178 beagles, as fileiras da Frente Parlamentar de Defesa dos Animais engrossam em Brasília.
Nas noites de gala na Suécia, nas cerimônias do prêmio idealizado por Alfred Nobel, não há registro de que algum vira-lata tenha ganho sequer um ossinho em gratidão pela contribuição de sua espécie à Ciência e, em especial, ao tratamento do diabetes. Desconheço. Fica aqui a sugestão: vamos dar simbolicamente um prêmio Nobel aos cães. Eles merecem!

Ricardo Osman é autor deste blog, jornalista e estudante de Medicina Veterinária na FMU (Campus Morumbi/SP). O artigo foi publicado na edição do dia 28 de outubro de 2013 no Diário do Comércio, jornal da Associação Comercial de São Paulo (ACSP).

Um comentário:

  1. Osman é um abnegado, um cara sensacional que pensa desde muito nos animais, a ponto de entrar para a veterinária por vocação e amor aos bichos. parabéns por sua trajetória.

    ResponderExcluir